sábado, 17 de novembro de 2012

Fernando Pessoa

Hoje a criança que há em mim escapou. Bobeei e ela fugiu. Minha maturidade cansada olhou e disse: “Deixa! Ela volta”. Eu deixei. Ela já saiu dando uma cambalhota no chão de terra molhado pela chuva, na qual dançou feito Fred Astaire. Pés descalços, chutando uma bola de meia, driblou senhores sisudos que vinham no contrafluxo de sua brincadeira e que, claro, reprovaram a afronta. Tomou nas mãos a bicicleta e disparou, permitindo-se um vento no rosto ladeira abaixo da rua, cabelos desgrenhados, mãos soltas do guidão, numa ousadia de que nem sequer me lembrava mais. Era acompanhado por Laika, uma vira-lata preta e dourada, que lembrava a Lassie. Ela latia como se batesse palmas para  seu dono. A criança não tinha um relógio.  O tempo era o que ela fazia. Minutos podiam ser horas, horas minutos. Uma total anarquia do tempo, como só as crianças sabem fazer.
Mastigava com prazer um chiclete de bola, daqueles de bolinhas coloridas. De cor vermelha. Num vacilo, engoliu o chiclete. Lembrou que ele poderia ficar no estômago para sempre, como haviam lhe dito. Aliás, haviam lhe dito tantas coisas que sua cabecinha inocente chegava a ferver. Logo se esqueceu disso e correu na areia que margeava o igarapé, se imaginando um gigante deixando pegadas no chão para amedrontar os pequeninos. Viu uma fila de formigas e com o dedo interrompeu-lhe a marcha


Tempo em que o tempo era um tempo diferente. Meus olhos de adultos veem um tempo redefinido. O ontem virou anteontem. O hoje virou o agora. O anteontem, século passado. A urgência não permite à minha criança tardes inteiras sentadas à beira do barranco olhando os carros que passam lá embaixo, como se fossem as formigas da imaginação. Hoje os carros não passam. Quedam inertes em histéricos engarrafamentos. Não cabe mais deitar no chão frio do corodum da casa, jogar sabão e voar num deslize libertador. Crescer enrijece a vida, leve, solta, sem limites quando na infância.

Dormindo, minha criança me sorri. De repente, abre os olhinhos, bêbados de sono, estende um largo sorriso e – como que adivinhando o que penso –  me diz, quase sussurrando: “Não esqueça de mim… E não esqueça de você… ” Cerrou os olhos e voltou a dormir dentro de mim. A maturidade, protocolar e racional, com um maneio de cabeça falou em silêncio: “eu te disse…”. Alguém passou o dedo na minha trajetória de criança…

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